domingo, 15 de novembro de 2009

Problemáticos com cultura...

Outra de Luís Fernando Veríssimo, mas mais engraçada que a de baixo...


Feliz Natal
Em certas Sociedades primitivas a mulher é a caçadora, e cabe
a ela prover a alimentação da unidade familiar. Reunidas em bandos
ou individualmente, elas saem todos os dias para a caça e nunca
voltam sem algum tipo de alimento para o companheiro e as crias.
Orientam-se pelo instinto e pelo faro e por um rudimentar método
de troca de informações que possibilita a todas convergir ao mesmo
tempo num lugar onde suspeitam que haja carne fresca e cercar a
presa, em formações simples de ataque chamadas "filas". Suas ar-
mas, além de grandes sacolas, são a determinação e a paciência e,
quando esta falha, os cotovelos e os pés. Quando se aproximam da
presa, emitem gritos de guerra como: "Esse pedaço é meu!", "Eu vi
primeiro!" ou "Larga!". Não é incomum usarem os dentes para garan-
tir o seu pedaço. É claro que as mais fortes e decididas levam
vantagem em tais ocasiões e são melhores provedoras. Em sociedades
assim a envergadura e a habilidade predatória da mulher são cada
vez mais valorizadas em detrimento de atributos "femininos" valo-
rizados em outro estágio de civilização.
– Essa sua mulher, hein?
– Que que tem?
– Parece um tanque.
– É. Mas vai tirando o olho grande que ela é minha.
Como seria a vida cotidiana numa sociedade assim? Vamos seguir
uma dessas caçadoras na sua rotina diária. Ela sai da toca e en-
contra a sua vizinha e melhor amiga, que também está saindo para
buscar alimento.
— Quem diria, Natal de novo...
— Coisa, né? Parece que foi ontem que terminamos de pagar as
prestações do último Natal.
Pausa.
— Pensando bem, foi ontem.
As duas riem. Guiadas pelo faro, dirigem-se para um supermer-
cado onde tem peru. Entram na fila. Quando chega a vez delas, só
tem um peru.
– Olha! Só sobrou o meu.
As duas riem.
– O seu não, o meu.
– Nós sempre fazemos peru no Natal. Esse é meu.
– Nós sempre fazemos peru no Natal. Compre outra coisa.
– Quero peru. Mesmo porque não tem outra coisa.
A mulher atrás delas, na fila, resolve dar uma solução prática
para o impasse. Diz que o peru é dela e avança em sua direção.
Nossa caçadora interrompe o seu avanço com um tranco de quadril
que a vizinha completa atirando a intrusa contra uma prateleira do
supermercado que, como está vazia, cai. As duas amigas apertam-se
as mãos, triunfantes, mas a vizinha aproveita para puxar a outra
violentamente na sua direção e grunhir na sua cara:
— O peru é meu.
As duas atracam-se. Enquanto isso, outras duas estão brigando
pelo mesmo peru. O conflito generaliza-se. Um gerente do supermer-
cado tenta intervir e é desmembrado. Gritos. Socos. Ruptura do te-cido social. E, súbito, uma faca.
*
O pai corta, cerimoniosamente, o peru. Serve os filhos, um por
um. O menor diz:
– Não quero.
– Como, não quer?
– Tenho horror de peru.
– Mas vai comer.
– Mas, papai...
– Você sabe que sua mãe morreu para nos dar esse peru! Come!
Todos comem em silêncio. Há um lugar vago na mesa. O lugar da
caçadora. O pai pensa vagamente que precisa se casar de novo. Com
uma leoa, pensa. Com as coisas como estão, tem que ser uma leoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário